14.4.15

Ética com razões - “Não posso ser otimista em relação ao faro moral.”


Pedro Galvão manifesta aqui a sua desconfiança em relação à simples intuição, não fundamentada racionalmente. Em matérias de ética, pensa que somos capazes de fazer claramente melhor do que "pensar com o nariz", quando contamos com os frutos da reflexão filosófica.

Universalização e consistência

Ao adotar o ponto de vista ético, queremos saber como agir de um a forma imparcialmente justificável e, para esse efeito, de um modo geral não temos de nos importar com aquilo que as leis dizem. Muita da argumentação (…) envolve duas ideias elementares que gostaria agora de clarificar.
Uma dessas ideias é o requisito da universalização. Podemos elucida-lo assim: Se pensamos que um determinado ato é errado, temos de pensar que todos os atos que sejam como esse nos aspetos eticamente relevantes são errados. Em termos mais gerais: se julgamos que um ato tem uma certa propriedade moral (como ser errado, louvável, injusto ou simplesmente aceitável), temos de estar dispostos a fazer o mesmo juízo a respeito de qualquer ato que não difira dele em qualquer aspeto eticamente significativo. O simples facto de um ato ter sido realizado por mim, por exemplo, não tem relevância ética, dado que não o torna imparcialmente justificável. Seria descabido julgar, violando o requisito da universalização, que um determinado ato é errado mas que um ato parecido é aceitável, ainda que estes não difiram em nenhum aspeto eticamente relevante. Isto nunca pode acontecer. Se há uma diferença moral entre atos, de tal forma que só um deles é errado, tem de haver uma razão para isso. (E podemos dizer o mesmo de outras coisas que, à semelhança dos atos, são objeto de avaliação ética, como práticas ou traços de caráter.) O requisito da universalização compele-nos, pois, a procurar as razões que sustentam avaliações morais diferentes. Como havemos de fazer isso? Tentando encontrar princípios éticos que, plausivelmente, justifiquem essas avaliações. Suponha-se, por exemplo, que considero que uma dada pessoa agiu de uma forma aceitável ao agredir outra, embora pense que geralmente é errado agredir pessoas. Terei de apontar, então, uma diferença relevante entre o ato que avalio positivamente e a generalidade das agressões a pessoas. Imagine-se que afirmo que o facto de esse ato ter sido realizado em autodefesa é a razão que o torna eticamente aceitável. Estarei assim a aceitar o princípio de que em certas circunstâncias, como aquelas que se verificaram, não é errado agredir em autodefesa.
Passemos à outra ideia elementar. Esta consiste num requisito puramente lógico: se aceitarmos um requisito ético, temos de aceitar tudo aquilo que decorre dele, isto é, todas as suas consequências ou implicações lógicas. Valerá a pena chamar a atenção para algo tão óbvio? Sim. Pois os princípios éticos indefinidamente vastas e não nos apercebemos com facilidade de muitas delas. Certos princípios parecem muito atraentes em abstrato, mas, logo que começamos a descortinar algumas das suas implicações mais definidas, revelam-se difíceis de aceitar ou mesmo repugnantes. Para avaliar um princípio ético, há que pensar muito bem naquilo que este implica, considerando tanto situações reais como casos meramente possíveis, por muito improváveis ou extravagantes que sejam. Se não estivermos dispostos a aceitar algumas das implicações de um princípio ético, temos de o corrigir ou simplesmente rejeitar, sob pena de inconsistência.
(…) Também seria um erro presumir que as questões éticas, não sendo enquadráveis nas ciências, escapam à investigação racional e não podem ser examinadas com objetividade. Há muita gente a pensar assim. A convicção que na ética é tudo relativo ou subjetivo encontra-se bastante difundido – um tanto surpreendentemente, a par de atitudes de profunda arrogância moral. Espero que, além de contrariar essa convicção, este livro iniba a arrogância. É  que esta atinge mais facilmente quem ainda não compreendeu como, em muitas questões éticas, é difícil descobrir onde para a verdade.

Pedro Galvão, Ética com Razões, 2015, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, pp. 9-11