26.12.08

Filosofia e Democracia

1. A Filosofia renovou-se na Grécia Antiga aquando da democratização da cidade de Atenas, no século V a.c.. Designa-se por viragem antropológica a inclusão do ser humano, na sua dimensão ética e política, no cerne das problemáticas filosóficas, além das preocupações com a Natureza que aparecem em todos os autores do período pré-socrático.
1.1. Há autores que referem o século V a.c., em Atenas, como um período de transformação cultural e da mentalidade semelhante à do Iluminismo do século XVIII, o que determinou, de facto, a evolução da Humanidade consubstanciada com os novos princípios filosóficos.

1.2. A implantação da democracia na cidade de Atenas exigiu que os cidadãos se emancipassem intelectualmente para poderem participar na política. Assim, a Filosofia tornou-se num meio privilegiado de preparação de uma cidadania esclarecida, activa e participada. Neste período, houve um conflito entre retores (sofistas) e filósofos na preparação intelectual dos jovens cidadãos. Os primeiros defendiam que, como toda a verdade é relativa, basta saber tornar persuasiva uma crença para se poder governar, enquanto os segundos defendiam que os jovens cidadãos deveriam ser educados, não na retórica, mas na aquisição do conhecimento do bem e do justo, para poderem governar de modo a alcançar-se o bem comum.

2. Revolução Francesa:1789. Após séculos de domínio teológico sobre a Filosofia, esta voltou a localizar-se no espaço que lhe pertence por natureza: a democracia. Assim, em 1795, Joseph Lakanal propõe a criação de um curso de Filosofia, com o objectivo de pôr termo à revolução na República Francesa e iniciar uma no espírito humano (em 1781 é publicada a primeira edição da Crítica da Razão Pura, em que Kant propõe uma segunda Revolução Coperniciana, com o intuito de revolucionar o entendimento humano).

2.1. Em França, por herança da Revolução de 1789, dinamiza-se o ensino da Filosofia, sendo criado um curso de Filosofia gratuito e obrigatório.

3. Após duas guerras mundiais e a dissolução de muitas ditaduras no mundo ocidental, a Unesco, em 1995, elaborou um estudo que revela que o ensino da Filosofia se desenvolve no mundo ao ritmo da democracia. Assim sendo, em muitos países que se democratizaram, foram criados cursos de Filosofia.

3.1. A Unesco desde a sua origem que tem recorrido à Filosofia para que se promovam os ideais que serviram de alicerces a esta organização.

3.2. A Unesco considera prioritário tornar acessível os estudos filosóficos. Por esta razão, na página da Unesco pode ler-se que dois dos seus objectivos são: "disponibilizar instrumentos internacionais para o progresso dos estudos filosóficos; colocar a filosofia ao serviço da educação internacional das nações. "

3.3. Considerando indispensável o ensino da Filosofia para a manutenção das democracias, a Unesco criou, em 2002, o Dia Internacional da Filosofia, que é celebrado na terceira quinta-feira do mês de Novembro.

4. Tendo em consideração a ligação essencial entre democracia e Filosofia, a revista francesa Philosophie Magazine, na edição de Junho de 2007, publica um estudo da Unesco que pretende mostrar que a consequência natural da democratização de um Estado é a promoção de cursos de Filosofia. O mapa que se segue foi extraído dessa edição e nele se pode verificar o vínculo entre o abandono de regimes totalitários e o progresso dos estudos filosóficos.

Com estes pontos, pretendemos elucidar o correlato existente entre democracia e filosofia. A democracia é, por um lado, o espaço onde o filosofar melhor se desenvolve a par da liberdade de expressão e de pensamento, sem nos vergarmos à autoridade; por outro lado, a filosofia contribui para a manutenção do regime democrático, seja pela preparação de cidadãos conscientes e críticos, seja pela preservação do rigor e exactidão na consecução do saber.
Para discussão: Será que o apagamento da filosofia pode significar uma crise na democracia?

8 comentários:

Graça Silva disse...

Olá Valter, parabéns pelo post!
Sintético e rigoroso, poupa-nos muito tempo de pesquisa destes assuntos :).

"Joseph Lakanal propõe a criação de um curso de Filosofia, com o objectivo de pôr termo à revolução na República Francesa e iniciar uma no espírito humano"

Hoje, mais do que nunca, a palavra e o argumento são fundamentais como ferramentas operadoras da(s) revolução(ões)do espírito. A recusa da barbárie que é a guerra, mais suja ainda porque sofisticada, só pode ser levada a cabo pelo diálogo que politicamente, é, devia ser, filosofia em acção.
O Filosofar,filho da velha democracia, é por sua vez gerador e condição de qualquer democracia genuína. Só esclarecido, o povo, a sociedade civil de modo geral, pode participar activamente e responsavelmente nos governos da pólis. O enfraquecimento da filosofia é pois, um sintoma das enfermidades que infectam a vida pública, nestes tempos de múltiplas dificuldades.

Valter Boita disse...

Olá Graça! Partilho da mesma posição.

Ainda que esta entrada contenha apenas factos e não apreciações, certamente que os mesmos factos apontam na seguinte direcção: a democracia, se a entendermos como a melhor forma de organizar um Estado, necessita filosofia, o que em termos mais específicos significa uma educação mais centrada nos valores do saber, da honestidade intelectual, da liberdade de pensamento e de opinião, de capacidade de avaliação crítica.

Quando se pretende, como aconteceu em Espanha, substituir a filosofia por educação para a cidadania é uma confusão epistemológica muito grande; sendo uma tentativa algo eufemística para temer dar nomes às coisas e desinvestir na democracia, ainda que não pareça.

Graça Silva disse...

Uma das propriedades que, segundo George Orwell, é caracterítica da manipulação política é precisamente o "eufemismo" ou maquilhagem camaleónica da ditadura. Assim, cobardemente embuçada, disfarçada com falinhas mansas se vai espalhando a ideologia que interessa e amenizando os nossos piores pesadelos.
O espírito crítico, será sempre a única "arma" que, garantindo a liberdade, condição da honestidade intelectual, com a qual progressivamente descobriríamos os valores do conhecimento e da sabedoria.
Mas isto exige trabalho... gostamos mais de "comprar" uma verdade pronta a consumir
plasmada nos ecrãs com os quais nos habituamos a decorar a nossa vida.

Renato Martins disse...

Olá,

Já tinha visto esta imagem em algum lado :-)
O Savater anda procupado com esta temática de Democracia-Filosofia. Para ele a Filosofia é fundamental, o mesmo já não diz da cidadania. Que o ouçam os nossos governantes, que algum fazem o mesmo que por espanha: Adeus Filosofia, olá Cidadania.

Abraço

Valter Boita disse...

«(...)cobardemente embuçada, disfarçada com falinhas mansas se vai espalhando a ideologia que interessa e amenizando os nossos piores pesadelos.»

Concordo plenamente! Enfatizo o "combardemente embuçada". Adquirir instrumentos que permitam a análise crítica das ideias serve para não nos deixarmos cair nos embustes criados pela retórica fácil e pretensiosa; alertar para o facto de que nem toda a estratégia retórica é moralmente aceitável, nomeadamente a que nos é imposta a aceita acriticamente, é o papel que cabe à educação de índole filosófica.

Valter Boita disse...

Olá Renato! Sim, é natural que conheças a imagem, publiquei-a no Café filosófico há uns meses! :)

Referes Fernando Savater e muito bem, pois ele continua a ser um alvo da ETA. Tens conhecimento de algum texto dele disponível online onde critique a disciplina de Cidadania?

Um abraço

Renato Martins disse...

Texto dele mesmo não conheço, o que sei resume-se a noticias. Mas nas minhas idas a Espanha tenho prometido a mim mesmo sucessivamente comprar a revista de razao critica onde ele é director - certamente ai estara alguma coisita. Quando a adquirir aviso-te.

Um hasta à lá nuestros hermanos!

Valter Boita disse...

Renato, não conheço a revista. Vou ver se encontro por aí em algum quiosque. Quando tiveres mais alguma informação diz.
Hasta y saudaciones a los nuestros hermanos, pero hijos de outra madre por supuesto!