24.4.10

Revista Crítica - "Diálogo sobre a ética kantiana"

Paisagem alentejana
Excelente diálogo sobre a ética kantiana na revista Crítica:
"João: Estou profundamente desiludido com a teoria de Kant.

Francisca: Pois eu nunca engoli muito bem a ética kantiana. Dá excessiva importância à intenção, mas esquece-se de que na prática só temos acesso às consequências.

Maria: O quê? A mim parece-me uma excelente teoria. Julgo que o imperativo categórico ("Age unicamente de acordo com a máxima que te permita querer a sua transformação em lei universal") é realmente um princípio ético fundamental e universal. Fundamental porque é dele que brotam todos os nossos juízos morais, e universal porque qualquer agente racional tem de o aceitar. (...)"

Por Luis Veríssimo
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19.4.10

A insatisfação da Razão

Henri Matisse, Ícaro (1943)

"A essência do homem é sede de infinito "

David: Já leste os textos recomendados?

Ana: Claro! achei-os muito interessantes. Kant é mesmo um filósofo genial.

David: Explica lá então, por que razão não nos satisfazemos com as limitações do nosso conhecimento?

Ana: Como sabes, Kant defende que só podemos conhecer o que podemos intuir. Tudo começa com a intuição dos objectos no espaço e no tempo - as formas ou estruturas da sensibilidade. Por consequência, só intuímos realidades empíricas, aquelas que podemos perceber naquelas estruturas.

David: Estou a ver. Podes dar um exemplo?

Ana: Ouviste aquela moto que passou? A moto provocou em nós uma certa impressão, nós conseguimos situar o barulho e a visão da moto num certo espaço (a rua) e num certo tempo (dezasseis horas e cinco minutos). Só podemos intuir objectos que estejam no espaço e no tempo.

David: Pois... sendo assim, a sensibilidade desempenha um papel muito importante no conhecimento.

Ana: Claro! mas não é suficiente. Para haver conhecimento é preciso que o entendimento entre em cena. Por isso podemos dizer que todo o conhecimento começa com a experiência mas não deriva dela. A sensibilidade recebe as impressões e estabelece entre elas uma relação espácio-temporal mas não sabe explicar a razão, não estabelece uma relação de causa-efeito. Esta parte cabe ao entendimento.

David: Podes dar um exemplo?

Ana: Consideremos duas impressões sensíveis: o aumento da temperatura e a dilatação de um corpo. A sensibilidade recebe as impressões e estabelece uma sucessão temporal desconhecendo que estão necessariamente ligadas. Isto só acontece quando o entendimento aplica o conceito de causa, o qual permite estabelecer relações de dependência entre estes dois fenómenos. O conceito de causa é uma forma ou estrutura além de outras, com as quais o entendimento humano está equipado. Kant chama-lhes conceitos a priori ou categorias do entendimento.

David: Muito interessante. Continua.

Ana: Só podemos conhecer os dados sensíveis, os fenómenos. Mas pensar é diferente de conhecer. Nada nos impede de pensarmos noutras realidades, os númenos. O conhecimento é condicionado e limitado, mas isso não exclui a existência de uma realidade que não podemos conhecer. A realidade não se reduz ao mundo dos fenómenos, aos objectos que podemos conhecer estabelecendo relações de causa e efeito pelo entendimento. É legítimo pensar que existe muito mais.

David: É por isso que a nossa razão é por natureza insatisfeita, com vontade de conhecimento absoluto...

Ana: Isso mesmo, exige que continuemos além do condicionado e que procuremos a causa incondicionada - a causa última - independentemente da sua existência ou, da possibilidade de a razão a alcançar.

David: "Conhece como se fosse possível atingir o conhecimento absoluto"...

Ana: É isso tudo. A razão "empurra" o entendimento levando-o a estabelecer relações causais entre os fenómenos como se fosse possível prolongá-las até encontrar a causa incondicionada. Mas isso implicaria a possibilidade da razão conhecer além da realidade espácio-temporal, o que claramente não é possível. Contudo, a razão insatisfeita, procura incessantemente decifrar o enigma que é o universo na sua totalidade.

18.4.10

Conhecimento e justificação

Ana: Haverá alguma forma de as nossas crenças constituirem conhecimento sem recorrer à justificação última?
David: Sim. Por contacto directo, através dos sentidos, ou através de um argumento.
Ana: Pois, mas estes dois tipos de justificação são problemáticos, não asseguram a verdade da crença como bem observaram os cépticos.
David: Em parte é verdade, nós podemos ter duas situações. Ou a justificação implica a verdade, e a crença está justificada, se a justificação implicar uma prova infalível de verdade. Ou a justificação não implica necessariamente a verdade da crença. Neste caso, todas as justificações são falíveis e podem ser questionadas. Penso que esta segunda hipótese é mais plausível. Não é necessário termos provas infalíveis para termos conhecimento. Tanto Descartes como os cépticos radicais estavam enganados neste ponto.
Ana: Podes explicar?
David: Penso que as nossas crenças se inferem de outras crenças, mas, ao contrário do que pensavam os cépticos, todas estão justificadas. As diferentes crenças estão ligadas entre si, justificamos umas a partir de outras.
Ana: Podes dar um exemplo?
David: Olha justificamos a crença de que a água é H2O através da crença nas análises químicas da água, ou justificamos a queda de um lápis através da crença de que os corpos são atraídos para a Terra pela força da gravidade.
Ana: Estou a ver. O nosso conhecimento funciona como uma espécie de rede... como elos numa cadeia. Cada novo elo pressupõe outros elos já existentes.
David: Isso mesmo. Cada crença suporta e é suportada por outras. Formam sistemas corentes e consistentes que se justificam entre si. Quando uma crença se revela falsa é substituída por outra. Não recusamos todas as crenças em bloco nem poderíamos fazê-lo mesmo que quiséssemos.
Ana: Mas, nesse caso, falta ainda justificar a rede como um todo e como é que os nossos sistemas de crenças se ligam à realidade. Parece-me que há aqui alguma circularidade - damos como justificado o que ainda falta justificar -, além disso, podemos descobrir que afinal todo o modelo estava errado e... voltamos ao princípio.
David: Tens razão, há sempre esse risco, mas penso que não é razão para abandonarmos este ponto de vista.
Ana: Então explica.
David: O todo é superior à soma das partes e se o todo funcionar...., se explicar o que precisa ser explicado, então, penso que deixa de haver circularidade ou pelo menos fica bastante limitada.
Ana: Estou a ver. É como o sistema respiratório ou o sistema digestivo no nosso corpo.
David: Isso mesmo, os quais por sua vez se integram em sistemas mais complexos.
Ana: Interessante. Poderemos compreender o todo?
David: Infelizmente penso que não. Afinal a justificação tem de parar em algum ponto. Não podemos encontrar a justificação última. Isso deve-se à nossa natureza, como pensava Hume. Somos finitos!
Ana: É verdade. Mas por que razão, sendo seres finitos, temos esta necessidade de procurar as causas últimas? De almejar o infinito?
David: Essa é uma boa questão.... Talvez Kant tenha algo a dizer sobre o assunto.
Tocou para a entrada. A resposta a esta questão teria de ficar para depois.

10.4.10

Faz o que quiseres e tem uma vida boa


“Não há nada pior do que darmo-nos conta de estarmos a sabotar com os nossos próprios actos aquilo que na realidade queremos ser…
Porque – de onde vêm os remorsos? Para mim é claríssimo: da nossa liberdade. Se não fôssemos livres, não poderíamos sentir-nos culpados (nem orgulhosos, evidentemente) de nada e evitaríamos os remorsos. (…)

Responsabilidade é saber que cada um dos meus actos me vai construindo, inventando. Ao escolher aquilo que quero, vou-me transformando pouco a pouco. Todas as minhas decisões deixam a sua marca em mim antes de as deixarem no mundo que me rodeia. E, evidentemente, depois de aplicada a minha liberdade de ir-me construindo um rosto, já não posso assustar-me com o que vejo ao espelho quando me olho… Se ajo bem ser-me-á cada vez mais difícil agir mal (e inversamente, por infelicidade): assim, o ideal é irmos apanhando o vício… de viver bem. (…)

(…) o que interessa à ética, o que constitui a sua especialidade, é como viver bem a vida humana, a vida que decorre entre seres humanos. Se não soubermos como arranjar-nos para sobreviver frente aos perigos naturais, perderemos a vida, o que é, de certeza, muito aborrecido; mas se não fizermos ideia do que seja a ética, o que perdemos e desperdiçamos será a humanidade da nossa vida, e isso, francamente, também não tem graça nenhuma.”

Savater, Fernando, Ética para um jovem, Editorial Presença, Lisboa, 1995, pp. 74, 77 e 82.

9.4.10

O valor moral de uma acção depende da intenção ou das consequências?

"De boas intenções está o inferno cheio"
"As boas intenções fazem as boas acções"

Provébios Populares

" [Suponha] o caso seguinte: alguém tem em seu poder um bem alheio que lhe foi confiado em depósito pelo seu dono, que entretanto faleceu sem que os seus herdeiros saibam nem possam vir a saber nunca desse depósito.

(...) O possuidor desse depósito, exactamente nessa altura, caiu na ruína total, vendo a sua família, mulher e filhos aflitos e cheios de privações, e sabe que ao apropriar-se do depósito poderia livrar-se de privações num abrir e fechar de olhos.
Além disso, suponhamos que o nosso homem é filantropo e caritativo, enquanto os herdeiros são ricos e egoístas, e de tal modo gastadores que, acrescentar o depósito à sua fortuna seria como atirá-lo directamente ao mar."

I. Kant, Sobre o lugar comum: isso pode ser correcto em teoria, mas não vale na prática, AK, VIII, 286-287 (texto adaptado)

Como se deveria actuar numa situação extrema como a colocada por Kant?
O que é que está em jogo na tomada de decisão do indivíduo que tem o depósito em seu poder? Se só ele (e o legítimo proprietário entretanto falecido) sabe da existência do dito depósito, por que não apropriar-se dele? A quem terá de prestar contas? Vivendo a sua família um momento difícil de privações, não terá ele mais razões para se apropriar do depósito e solucionar os seus problemas? Além disso sendo uma pessoa caritativa, se ficar com o dinheiro não contribuirá mais para a felicidade comum?
Haverá alguma razão para não ficar com o dinheiro e o entregar aos herdeiros? Qual a hipótese mais plausível?

O problema da fundamentação da moral

Renné Magritte, 1963, A Grande Família
"A moral (ou ética) diz-nos como devemos viver ou o que temos de fazer para ter uma vida boa. Mas o que é realmente o bem? Há muitas coisas boas, evidentemente; mas haverá algo que possamos reconhecer que é um bem tão fundamental que todos os outros bens resultam de algum modo dele? O que poderá ser tal coisa?
E como devemos agir? Que princípio ou princípios fundamentais devem orientar a nossa acção? Quando dizemos que uma acção é correcta e outra incorrecta, qual é realmente a diferença entre a duas? Que critério nos permite dizer que uma é correcta e a outra não?
Perguntar pelo fundamento da moral é procurar saber duas coisas:
1. Qual o bem último?
2. O que faz uma acção ser correcta?
Por bem último entende-se o bem do qual os outros bens resultam. Por exemplo, o dinheiro não é o bem último, dado que só é um bem porque permite adquirir outros bens.
Immanuel Kant e John Stuart Mill respondem de formas diferentes a estes problemas. O primeiro defende uma ética deontológica, o segundo uma ética utilitarista."
Textos e Problemas de Filosofia, Organização de Aires Almeida e Desidério Murcho, 2006, Plátano Editora

8.4.10

David Hume, além da experiência dois...

Depois da conversa com o David, a Ana procurou arrumar algumas ideias...

Por que razão fazemos constantes inferências a partir de princípios que somos incapazes de fundamentar sem reservas? Não haverá outra forma de justificar as nossas crenças sem termos de recorrer ao seu fundamento último?


É um facto que algumas das nossas crenças estão justificadas (nem David Hume o nega), o mundo complexo em que vivemos, a experiência do dia-a-dia comprova-o, mas parece também claro que este conhecimento é impossível de fundamentar de modo absoluto, ao contrário do que pensava Descartes; nenhuma reflexão por mais radical que seja é capaz de o negar.


O mesmo não acontece com outras noções igualmente supostas por nós e que estão na base do nosso conhecimento. Supomos por exemplo, que os "Eus", as nossas mentes, são entidades que persistem através do tempo e da mudança, que no fundo de cada um de nós há uma substância que permanece inalterada, mas teremos alguma razão para pensar assim? Se não, como formamos esta ideia e porquê?

Se, por introspecção tentarmos compreendê-la, veremos apenas uma sucessão de impressões momentâneas e efémeras numa espécie de teatro em constante mudança. A introspecção não capta nada mais... vimos unidade apenas naquilo que é diversidade... E quanto ao mundo, teremos razões para pensar que é uniforme e estável?

Intuitivamente supomos que o mundo externo é feito de objectos estáveis. Mas aquilo de que temos experiência também é momentâneo e efémero. Logo, a nossa confiança intuitiva de que o mundo é feito de objectos distintos e contínuos não parece correcta, parece ser apenas formada pela nossa natureza, pelo modo como evoluímos.

Mas é inegável que há conhecimento, apesar de não podermos confiar absolutamente, nem na nossa mente nem no mundo.

Contudo, se partirmos do princípio de que o único fundamento seguro é a experiência - como pensava Hume-, temos de concluir que esse conhecimento é muito limitado, excluindo qualquer realidade metafísica.

David Hume, além da experiência...

Ana: Podes explicar-me em que experiência se baseia a noção de causalidade?
David: Se bem entendi, a noção de que há uma relação de causa e efeito entre os fenómenos deve-se à experiência de vermos repetidamente um certo tipo de objecto ou evento, relacionados. Esta experiência de contiguidade leva a mente a inferir um certo tipo de objecto ou evento sempre que tem a impressão do objecto ou evento que habitualmente o antecede.
Ana: É esse tipo de hábito que leva Hume a concluir que a causalidade não é mais do que essa conexão necessária que a experiência do passado formou em nós.
David: Isso mesmo, um hábito mental produzido por factos contingentes ligados ao funcionamento da natureza humana.
Ana: Podes dar um exemplo?
David: Olha o facto de termos experienciado muitas vezes que este banco em que nos sentamos suporta o nosso peso, ou o facto de experienciarmos muitas vezes que o arroz alimenta...
Ana: ... Mas estas são inferências indutivas.
David: Sim.
Ana: Por que razão pensamos assim?
David: Porque esperamos que casos futuros sejam semelhantes aos casos do passado e que o curso da Natureza continue uniformemente o mesmo.
Ana: Estou a ver, é o Princípio da Uniformidade da Natureza, tão caro à ciência e ao conhecimento de modo geral. Temos alguma justificação para pensar assim?
David: Vejamos, em que permissa podemos apoiar a conclusão de que o que aconteceu no passado acontecerá no futuro?
Ana: Na premissa de que a Natureza tem sido uniforme nas nossas observações do passado.
David Pois, mas este argumento é indutivo e circular.
Ana: Será que uma justificação dedutiva seria mais adequada?
David: Não me parece. A razão é que o princípio da uniformidade da natureza não pode ser deduzido das observações do passado. Poderíamos tentar outro tipo de dedução, por exemplo procurar deduzi-lo dos termos em causa. Nesse caso seria uma verdade conceptual semelhante a: "os solteiros não são casados". Mas não há nenhuma contradição na suposição de que a natureza deixará subitamente de ser uniforme (o que contraria o princípio da dedução conceptual). Logo, esta tentativa também falha.
Ana: Então o que é o Princípio da Uniformidade da Natureza?
David: Mais uma vez temos de concluir simplesmente que se trata de um hábito mental, ainda que importante na aquisição de conhecimento. O que acontece é que a nossa natureza humana funciona assim, mas não podemos honestamente excluir a hipótese de que um dia deixe de funcionar desta forma.
Ana: Compreendo. Esta ideia é perturbadora. Parece que a possibilidade de conhecermos alguma coisa fica definitivamente comprometida.
David: Não na totalidade. O conhecimento com base na experiência empírica bem como o conhecimento analítico, são possíveis.
Ana: É verdade, mas Hume pensa que o conhecimento analítico não é substancial. O único conhecimento genuíno tem base na experiência e, esta, baseia-se na causalidade e no princípio da uniformidade da natureza.

7.4.10

Agostinho da Silva

Nasceu a 13 de Fevereiro de 1906 no Porto e faleceu em 3 de Abril de 1994, com 88 anos de idade. Além de professor, filósofo e investigador, Agostinho Baptista da Silva foi um grande escritor. No seu currículo constam mais de 60 obras.

Acima de tudo foi um livre pensador, exonerado do ensino público - durante o Estado Novo -, por se recusar a assinar um documento em que era suposto declarar que não pertencia a nenhuma sociedade secreta (lei Cabral, obrigatória para todos os funcionários públicos). Embora não fizesse parte de nenhuma sociedade desse género, recusou-se a assinar tal documento.
O excerto seguinte foi retirado do seu livro: "Sete cartas a um jovem filósofo":

"Do que você precisa, acima de tudo, é de não se lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles forem meus, não seus. Se o criador o tivesse querido juntar a mim não teríamos talvez dois corpos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem."
Ler mais sobre o autor aqui e aqui.