Este texto foi publicado por mim aqui há uns meses. Decidi adaptá-lo ao Logos-ecb porque hoje, numa aula de 11.º ano, os alunos surpreenderam-me pelo modo como caracterizaram a mentalidade dos jovens (como indiferentes ao saber e às manifestações culturais). Fica aqui, como proposta de reflexão, algumas ideias, ... aguardo por outras!
Um dos mitos que é necessário banir do ensino secundário é o de que só é bom aluno a Filosofia aquele que melhor souber escrever. É natural que quando pretendemos expor as nossas ideias necessitamos de usar correctamente a língua na qual trabalhamos. Contudo, há quem confunda escrever bem e bem escrever. O escrever bem é uma competência fundamental que todos os alunos escolarizados deverão ter, mas bem escrever não será tão necessário, pelo menos no que toca à disciplina de Filosofia.Por escrever bem entendo a capacidade de usar a língua portuguesa de modo proficiente, ora redigindo ora apresentando oralmente um discurso organizado, coerente, sem infracções na ortografia, na sintáctica e na gramática. Bem escrever consiste na arte de redigir um discurso ornamentado por figuras de estilo e outros recursos estilísticos, revelando destreza no uso de metáforas e de metonímias, fazendo da língua um instrumento artístico e embelezador.
Em Filosofia, privilegia-se o equilíbrio entre o escrever bem e o pensar bem. Não quero com isto dizer que noutras disciplinas isso não aconteça. Como há uma relação bem íntima entre pensamento e discurso, as regras lógicas deverão orientar as regras gramaticais.Quando se penetra no íntimo da disciplina, na especificidade dos seus problemas (a existência de Deus, a origem do conhecimento, o livre-arbítrio, a natureza da arte, ...), quais são as ferramentas para se poder filosofar?
a) Conceitos – conceptualizar
b) Problemas – problematizar
c) Teoria (conjunto articulado de teses)
d) Argumentos (provas racionais para se mostrar que uma determinada tese é verdadeira) – argumentar
Conceptualizar, problematizar, argumentar correspondem ao trabalho filosófico ele mesmo, e são estas capacidades que se exigem dos estudantes. Esta concepção de trabalho filosófico está longe de ser consensual, pois muitos filósofos recorrem a um estilo (bem escrever!) hermético para expressar as suas ideias, violando logo o princípio filosófico da clareza, da evidência, da inteligibilidade, que num dado período se pensou alcançar-se unicamente pela via lógica.
Há muitos filósofos que mais parecem escritores (e bons escritores) do que técnicos de produção de conhecimento. Há muitos filósofos que enveredam por um caminho obscuro na transmissão do seu conhecimento, tornando-se difícil distinguir os argumentos apresentados dos argumentos a refutar.
Considerar que a Filosofia é difícil, que é preciso escrever algo que ninguém entenda, é uma tendência do que designo por retórica da fragilidade. Por retórica da fragilidade entendo a inépcia com que se arranjam subterfúgios retóricos para mostrar que se tem razão, sendo necessário reclamar toda a espécie de autoridade para se esconder que não se sabe pensar (seja pela forma de citação abusiva e descontextualizada, seja pela forma como se aventam ideias confusas só para se enxertar profundidade na superficialidade).
A retórica da fragilidade não é apenas uma noção aplicável ao trabalh
o filosófico, é também uma característica moral de quem argumenta. Tal torna-se visível na incapacidade de arranjar provas racionais para mostrar a verdade de uma determinada posição através da desculpabilização, relegando a culpa para o interlocutor, considerando-o inapto para compreender as profundidades do orador.
Os estudantes estão a ficar despojados de uma formação humanista, fundamental para a inserção dos indivíduos numa sociedade. A iliteracia funcional, elevada a um dos problemas com os quais a teóricos da educação se debatem actualmente, só pode ser multiplicada nesta lógica da produtividade de alunos com o 12º. ano, mas privados de disciplinas que enriqueçam o seu currículo humano, cívico e crítico; na ausência de instrumentos que os possam ajudar a singrar no mundo do trabalho e no cumprimento da cidadania, tornar-se-ão, à mercê da retórica da fragilidade, elementos de um exército bem artilhado mas que não sabem usar as armas que têm. É esta a consequência da perda da Filosofia para disciplinas de carácter técnico (que são importantes, mas que por si só, pouco valor têm sem o suporte de enriquecimento cultural e humanístico). É esta a retórica que levou à suspensão dos Exames Nacionais de Filosofia como provas de ingresso ao Ensino Superior, no momento em que, por obra do Processo de Bolonha, as universidades portuguesas exigem alunos com capacidades intelectuais e críticas que sustentem o espírito de emulação com as universidades europeias.

Para discussão: Será o argumento de Calvin aceitável?