Será possível penetrar nos pensamentos íntimos de uma outra pessoa? Terá a comunicação humana limites? Será a mente humana um programa semelhante ao dos computadores num organismo biológico? Qual é a relação entre mente e corpo?
Este livro alude a estas e outras questões relacionadas com a filosofia da mente, constituindo assim um exemplo de como a literatura pode abrilhantar os nossos pensamentos filosóficos e até mesmo servir de mote para a reflexão crítica.
Ralph Messenger (talvez não seja um mero acaso uma das personagens principais ter como apelido o nome de um programa que permite conversar com os outros) é um prestigiado professor da Universidade de Gloucester e director do Centro de Ciências Cognitivas Holt Belling da mesma Universidade, preocupado com a Inteligência Artificial e com todas as repercussões filosóficas que esta problemática encerra. Helen Reed é professora convidada de Literatura na mesma Universidade e escritora, que toma por verdadeira a premissa de que pensar a consciência só é possível a partir da literatura. De facto, quando estamos a ler ficção temos a percepção de que o autor nos está a comunicar os seus pensamentos mais secretos, aqueles que não chega a partilhar com mais ninguém, nem com a mulher, com os filhos ou com os gatos.
Ralph Messenger colige os seus pensamentos mais secretos, seguindo a noção de consciência como fluxo de William James, gravando tudo o que lhe ocorre ao pensamento consciente. Helen Reed recolhe e guarda os seus pensamentos num diário. Messenger está interessado em trocar os seus pensamentos com os de Helen, embora esta rejeite e encare tal investida como uma "perversão".
Os diálogos deste romance estão repletos de referências filosóficas e científicas sobre a mente e a cognição. Se pensar é o diálogo da alma consigo mesma, como defendeu Platão, dialogar é partilhar os pensamentos que ocorrem nessa conversa interior. Contudo, quem é que está agora a pensar no que hei-de escrever neste "post"? Será que os pensamentos que quero reproduzir nesta janela virtual são independentes dos dedos que pululam por este teclado? Qual é, afinal, a relação entre a mente, que permite que eu tenha pensamentos, e o corpo que tanta vezes me afasta do pensamento e me obriga a ver televisão de um modo desenfreado?
Os filósofos encaram estes problemas como um só: o problema da mente. Este pode ser formulado do seguinte modo: será a mente independente do corpo? As respostas a este problema aparecem agrupadas em duas categorias: 1) dualismo, que defende que a mente é independente do corpo e por isso lhe pode subsistir após a morte; 2) monismo, alegando que a mente é uma parte do corpo.
Neste livro, as referências a experiências mentais usadas por filósofos e cientistas (que se dedicam às ciências cognitivas, como a personagem do livro) são várias: o morcego de Thomas Nagel, para provar que os qualia (crenças, desejos) são inéfáveis, tornando-se impossível qualquer investigação científica sobre a consciência; o dilema do prisioneiro; o quarto chinês de John Searle (no manual do 11.º ano aparece mais informação sobre esta experiência mental); a cientista da cor de Frank Jackson ou o gato de Schrodinger; mediante os quais se ilustra a inconsistência de uma tese funcionalista da mente humana.
Por outro lado, a conotação religiosa de alma vai-se dissolvendo à medida que a investigação cognitiva aumenta. Helen parece preocupada, pois a crença na existência da alma humana levou-a a preservar na memória o marido que falecera há uns meses, acontecimento que a reaproximou da religião católica. A mentalidade evolucionista (ou materialista) de Messenger entra em rota de colisão com a mentalidade religiosa de Helen, embora isso não sirva para reprimir o desejo de se apaixonarem um pelo outro.
Trespassado pelo humor inteligente, a que Lodge já nos habituou noutros livros, bem como pelo estilo claro e preciso, Pensamentos Secretos é um livro que se lê de um só fõlego, em que chegados à ultima página a única ideia que nos assalta é a de o reler.
Dos muitos diálogos interessantes que este romance contém, transcrevo um, no qual Messenger e Helen discutem sobre o problema central que dá título ao livro: os pensamentos secretos.
«-[...] Hoje em dia já são muito poucas as pessas inteligentes que acreditam na história contada pela religião, embora continuem a agarrar-se a ela e a procurar consolo em alguns dos seus conceitos, tais como a alma, a vida para além da morte, e por aí fora.
- Penso que é precisamente isso que o incomoda, não é? - diz Helen. - Que a maior parte das pessoas continue teimosamente a acreditar que existe um espírito dentro da máquina por mais que os cientistas e os filósofos lhes digam que não.
- Não me «incomoda» propriamente - diz Ralph.
- Incomoda, sim - diz Helen. - É como se estivesse apostado em eliminá-lo da face da terra. Que nem um inquisidor determinado a pôr fim às heresias.
- Só acho que não devemos confundir aquilo que gostaríamos que fosse com aquilo que realmente é - diz Ralph.
- Mas admite que temos pensamentos que são privados, secretos, conhecidos apenas de nós próprios.
- Sim, claro.
- Admite que a minha experiência deste momento, estar aqui refastelada na água quente a contemplar as estrelas, não é exactamente a mesma que a sua?
- Estou a ver aonde quer chegar - diz ele. - Está a dizer que existe algo que lhe pertence só a si, ou a mim, uma certa qualidade da experiência que é exclusivamente sua ou minha, que não pode ser descrita com objectividade nem explicada em termos puramente físicos. Aquilo a que poderíamos chamar um eu imaterial ou alma.
- Sim, penso que sim.
- Pois eu digo que continua a ser uma máquina. Uma máquina virtual dentro de uma máquina biológica.
- Então é tudo uma máquina?
- Tudo o que processa informação é, sim.
- Acho essa ideia aterradora.
Ele encolhe os ombros e sorri. - Você é uma máquina que foi programada pela cultura para não reconhecer que é uma máquina.»
17 comentários:
Olá Valter!
Neste fim de ano, encontrei perdido numa livraria do Norte, o livro de Richad Swimburne, Será que Deus Existe? Que se encontra esgotado na editora há muito. Li-o de um fôlego (é pequeno), achei-o muito interessante principalmente os 5 primeiros capítulos.
Nele encontramos (5º capítulo) uma referência à questão da mente.
Este autor toma partido pelo dualismo da substância, como resposta à questão: será a mente independente do corpo? . Apoia a sua posição na intencionalidade da acção ilustrando com algumas experiências mentais tais como o transplante de partes do cérebro.
Não sei se "a noção de Alma se dissolve à medida que a investigação cognitiva aumenta", parece-me que, apesar da concepção evolucionista, continua a haver boas razões a favor de uma perspectiva dualista. A concepção evolucionista pode até ser vista como uma ajuda preciosa na especificação de alguns conceitos fundamentais.
Cumprimentos filosóficos
É isto mesmo que me preocupa no ser humano: não seremos nós máquinas programadas para acharmos que não somos máquinas? Não estaremos programados para nos iludirmos com esta suposta realidade?
Segundo o texto existem duas hipóteses para o problema da mente. De facto, parece muito mais bonito para alguém pensar que a mente está separada do corpo, isso possibilita a imortalidade da alma . É uma ideia bem mais alegre do que imaginar que para lá da vida nos espera Nada. No entanto, se a mente e o corpo fossem separados, o corpo jamais tomaria atitudes que a mente despreza... Certo?
Olá Ana Luisa!
Bem vinda ao Blog e obrigada por partilhar connosco as suas ideias que serão sempre bem vindas.
Quanto às primeiras questões que coloca, estou a preparar uma resposta que brevemente partilharei.
Quanto à questão final, não sei se percebi, mas parece-me que a conclusão a retirar da premissa que coloca é exactamente ao contrário. Se a mente fosse separada do corpo, então haveria toda a razão para supor que pudessem não estar de acordo de vez em quando, não será? :-)
Olá Graça!
Parece-me que a noção de alma foi excluída do discurso filosófico e científico precisamente pelas conotações religiosas que contém. A alma é, no contexto da cultura ocidental, a imagem e semelhança de um ser divino e omnipotente. Para se discutir o problema da mente-corpo há que suspender o juízo relativamente à noção de alma. O que achas?
Ana Luísa, bem vinda ao blog! Também confesso que não percebi a tua afirmação!
No post referia apenas duas respostas clássicas ao problema. Além do dualismo, actualmente apresentam-se mais duas respostas:
a) o fisicalismo que defende que a mente não é mais dos que os processos bioquímicos do cérebro; b) a teoria do aspecto dual defende que apesar de os pensamentos, sentimentos, desejos e crenças serem despoletados por mecanismos complexos ocorridos no cérebro, a mente não se restringe ao cérebro;
Exemplo: quando cheiras uma flor, o seu cheiro é uma propriedade da flor ou uma propriedade que atribuis à flor através da informação recebida pelos teus órgãos sensoriais? Para os defensores da teoria do aspecto dual, quando cheiras uma flor ocorre em ti dois processos: um físico através do teu cérebro que vai processar a informação colhida pelos órgãos sensoriais, o que é o mesmo que dizer que implica tansformações eléctricas e químicas; outro mental que é a tua experiência do cheiro da flor.
Um neurologista a meio de uma intervenção cirúrgica ao cérebro é incapaz de saber o que o indivíduo que está a operar sentiu, efectivamente, quando cheirou uma flor.
Esta teoria é, de facto, interessante, porque ao excluir o dualismo (mente é independente do corpo), exclui igualmente uma posição demasiado materialista e "fisicista" das experiências pessoais. A mim apraz-me ouvir o útimo álbum dos Portishead, pela voz da Beth Gibbons sou transportado a uma dimensão que me traz tranquilidade; no entanto, conheço pessoas que não a suportam e a acham demasiado deprimente. Contudo estas experiências tiveram lugar em mim, no meu corpo, conduzidas pelo meu cérebro, mas não deixam de ser experiências que nenhum cientista conseguirá alguma vez observar ao microscópio.
Este romance do David Lodge é uma forma de nos introduzirmos neste problema! Espero que o leias e um dia publiques aqui as tuas impressões que serão, agradavelmente, diferentes das minhas! :)
Valter,
Quando usei a palavra alma, usei-a no sentido de mente que é o sentido que Swimburne lhe atribui. É certo que a mesma é usada pelo autor com um significado religioso, mas este é sempre postulado como resultado daquele.
Quando digo que continua a haver boas razões a favor do dualismo da substância também não quis dizer que essa é a minha posição. Tem apenas o seu significado literal. :-)
cump. filosóficos
Boa tarde,
A questão está mal formulada, é verdade. A professora Graça tem razão, parece que é exactamente o contrário.
Digo desde já que também estranhei o que escrevi, no entanto, essa foi uma ideia que retirei de uma frase que me despertou, especialmente, o interesse mas que não ficou bem esclarecida; passo a citar, "Qual é, afinal, a relação entre a mente, que permite que eu tenha pensamentos, e o corpo que tanta vezes me afasta do pensamento e me obriga a ver televisão de um modo desenfreado?"
Ou seja, a partir daqui deduzi que se a mente (pensamento) fosse separada do corpo este não agiria em conformidade com os nossos pensamentos, nem tão pouco os contrariaria, até porque não havia nada para contrariar.
Outra questão: Se considerarmos que, por um lado, temos a vertente física e, por outro, temos a vertente pessoal (pelo menos, foi assim que entendi), não irá isto conduzir ao subjectivismo? Isto é, não será possível alguém advogar que uma vez que a mente é um aspecto pessoal e impossível de analisar cientificamente, é permissível desenvolver certos actos prejudiciais para a maioria apenas porque o agente alega que ocorreram na sua mente processos sensoriais muito agradáveis e impossíveis de ocorrer na mente de outrem? Ou então alegar que o corpo não pode ser responsabilizado por algo que a mente domina e com o qual não estabalece uma relação assim tão próxima: uma coisa é o corpo, outra é a mente. Desta forma, não havendo castigos para a mente e estando esta separada do corpo, não faria sequer sentido castigar o corpo: eles iriam manter a sua "discórdia".
Por fim, uma última dúvida; esta teoria dualista vai de encontro ao que lemos numa aula sobre Alcibíades, em que Platão, tomando a voz de Sócrates, defendia que a mente era algo que usava o corpo e por aquilo que se usa ser diferente de quem usa, também a mente teria de ser diferente do seu corpo, não é assim? Se bem me recordo, na altura tinha discordado desta posição exactamente porque permitia que se considerasse a possibilidade de a alma permanecer imortal; afinal, o que morre é o corpo.
Não sei se fui clara relativamente à exposição das minhas questões, mas estas já são, só por si, difíceis de expor :)
Olá Graça! :)
Vou ter mesmo de ler Swinburne. Este fim de semana vou estudar o cap. V.
Vê lá se estou a raciocinar correctamente.
Parece-me insustentável que se defenda o dualismo pelas seguintes razões:
1. a primeira de natureza metafísica - se sou algo de diferente do meu corpo, então "sou" exactamente o quê antes de ter corpo e serei o quê depois de o ter?; ser corpo ("Sou o meu corpo), como dizia Merleau-Ponty)implica que sejamos também a mente que ele "alberga" ou, melhor dizendo, que ele sugere. Pois existem corpos humanos desprovidos de mente. A mente é, então, como te dizia na nossa discussão da tarde, como a música que sai da orquestra; o corpo assemelha-se então à orquestra e funcionando como um todo organizado, pode sugerir a mente. Basta haver uma falha na orquestra, um violinista que partiu um dedo ou um flautista com pouco fôlego, para a melodia não fluir do modo que se pretendia.
b) a segunda de natureza epistemológica - se enveredarmos pelo dualismo, corremos sérios riscos de nunca resolver o problema da mente-corpo (apesar do McGinn considerar que este problema é insolúvel), sem invocar argumentos teístas. E porquê? Porque continuaremos a insitir na independência entre o corpo e a mente o que invalida qualquer tentativa de resolver o problema, pois a mente "exprime-se" num corpo e um corpo sugere a mente. Os meus estados mentais seriam certamente diferentes se tivesse um outro corpo [talvez se fosse mais alto estivesse a ver as coisas de outra maneira... :))]
Saudações metafísicas
Olá Ana!
No teu comentário e recordando-me da aula em que discutimos o argumento de Platão, parece-te insustentável o dualismo. A mim também!
«Se considerarmos que, por um lado, temos a vertente física e, por outro, temos a vertente pessoal (pelo menos, foi assim que entendi), não irá isto conduzir ao subjectivismo?»
Em primeiro lugar, convém clarificar o que se entende por subjectivismo. Distinguem-se duas formas de subjectivismo:
1) o moral (segundo o qual os juízos morais são apenas a expressão dos sentimentos do sujeito que os exprime);
2) o epistémico, segundo o qual todo o conhecimento se baseia em juízos que transparecem as percepções do sujeito.
Deixemos agora (1) e concentremo-nos no (2).
Se o conhecimento se baseia em juízos ou crenças fundamentadas apenas nas percepções do sujeito (cabendo aqui as suas sensações), todo o conhecimento é particular e relativo. No entanto, se o conhecimento fosse subjectivo, continuaríamos a acreditar que o Sol se move porque o vemos mover-se. Portanto, nem tudo o que experienciamos e percepcionamos pode servir de fundamento ao conhecimento.
A crença de que corpo é independente da alma (Dualismo) terá repercussões filosóficas, no que respeita ao conhecimento. Platão e Descartes acreditavam que o ser humano possuía ideias inatas (que não são adquiridas mediante as experiências corporais). Ora, o primeiro postula a tese de que há um mundo inteligível e que a mente (ou alma) tem a mesma natureza que esse mundo, ao passo que o corpo é o "cárcere da alma" (como diz Platão), é da mesma natureza que o mundo sensível. Assim, Platão assegura que o verdadeiro conhecimento é de natureza inteligível (fundamentando-se nas ideias inatas) e racional.
Descartes, outro defensor do dualismo, também aceita a premissa da existência das ideias inatas para provar que o conhecimento verdadeiro nada tem que ver com as ideias que temos dos objectos físicos e que são criadas a partir das sensações e impressões. Qual a origem das ideias inatas? Descartes é peremptório: tem de existir um ser superior, omnisciente, capaz de depositar em nós essas ideias.
As experiências que temos das coisas, "o sabor de um gelado", "um aroma", "um sentimento", não estão no cérebro nem no corpo, mas são sugeridos pelo corpo. É aqui que surge nos dias de hoje o problema da mente-corpo. Um indivíduo com problemas auditivos terá dificuldades em perscrutar uma melodia da mesma forma que um outro que disfruta em pleno das suas faculdades auditivas. Diz-se que ter queda para a música implica ter bom ouvido. Tudo isto é verdade, mas a melodia não se restringe ao que o ouvido capta, mas ao modo como a tua mente a interpreta. E então podes gostar e outro indivíduo pode não gostar. Mas isto não é subjectivismo, é apenas uma experiência subjectiva e privada, na medida em que eu não posso sentir o que tu sentes quando cheiras café moído. Eu sei o que sinto e a experiência que tenho perante tal aroma, mas não tenho a capacidade de entrar na tua mente e saber o modo como sentes esse aroma. Nem eu, nem um neurologista que decidisse estudar o teu cérebro! :))Essas experiências privadas, esses pensamentos secretos são uma parte do problema da mente-corpo, que serve apenas para contestar a tese fisicalista de que a mente é o cérebro na sua actividade bioquímica normal.
P.S: Desculpa alongar-me na resposta, mas a pergunta puxou por mim!
Pois, de facto também não me parece que sejamos somente matéria física (ou seja, o corpo com as suas especificidades biológicas). Mesmo que a posição dualista pareça insustentável, nao podemos negar que os pensamentos são algo demasiado pessoal e privado.
Obrigada pela resposta, agora está bastante mais claro. No fundo (e corrija-me se estiver enganada)podemos considerar que o homem é a junção do corpo e da mente num mesmo reservatório (e estes não se podem separar), ainda que a existência de experiências sensoriais pessoais nos indiquem que o pensamento consegue ultrapassar os processos bioquímicos sugeridos pelo fisicalismo.
Olá!
«(..)podemos considerar que o homem é a junção do corpo e da mente num mesmo reservatório (e estes não se podem separar), ainda que a existência de experiências sensoriais pessoais nos indiquem que o pensamento consegue ultrapassar os processos bioquímicos sugeridos pelo fisicalismo.»
Este problema não tem uma (ainda) resposta definitiva, talvez com os avanços das neurociências (como Damásio alega na entrevista)seja um dia possível compreender a causa dessas experiências privadas, bem como, e o mais importante de tudo, a consciência que temos de nós mesmos. Damásio explora isso num livro, que ainda não li, "O sentimento de si".
Filosoficamente, há quem considere (por exemplo, o filósofo ingês Colin MgGinn) que este problema é insolúvel. Pensando cá para os meus botões, as dificuldades em resolver o problema devem-se: a) à falta de informações empíricas relevantes; b) ao facto de ser indispensável para a nossa sobrevivência acreditarmos que não somos apenas matéria. As lembranças e as recordações das pessoas que amámos e que partiram precocemente, dão-nos ânimo para acreditarmos que não somos uma coisa entre as coisas. É este problema que aparece no romance de David Lodge através da personagem da Helen Reed. É que recusamos olhar-nos ao espelho e vermo-nos como matéria enformada!
Mas é bom ir pensando nestas coisas, e puseste-me com muitas dúvidas sobre o tema, de tal modo que vou investigar mais.
Bom fim de semana
Olá Ana Luísa!
Saúdo a tua participação activa no blog, que me levou a rever leituras feitas e a pesquisar outras. Estou por isso mais rica!
:-) e, como o prometido é devido cá vai a minha resposta.
O teu comentário coloca duas questões interligadas, a saber; se a mente é separada ou não do corpo, à qual o Professor Valter já respondeu, e se somos ou não uma espécie de máquinas programadas para nos iludirmos.
É possível que neste momento já saibas a resposta à primeira pergunta, vou por isso, respoder à segunda.
A ideia de que podemos ser máquinas é postulada das ideias fisicalistas/materialistas de que:
- O cérebro é um computador;
- A mente um programa computacional;
- A actividade cerebral pode ser simulada em computador.
a segunda destas premissas parece-me a mais fraca, por isso vou procurar refutá-la apoiada nas ideias defendidas pelo filósofo Hubert Dreyfus e Thomas Nagel.
Cont.
Dreyfus mostra que há diferenças radicais entre a nossa inteligência e a inteligência artificial. Esta, quanto mais informação mais tempo de processamento, na humana passa-se o oposto, quanto mais sabemos, mais fácil e rapidamente adquirimos novas informações. Além disso, a nossa mente é criativa.
Parece haver boas razões para crermos que a nossa inteligência é gestáltica, ou seja, processa-se no reconhecimento de padrões e estruturas, mesmo padrões distorcidos. Os computadores processam actividade inteligente formal complexa, mas não podem processar actividade não formal, aquela que depende de contextos, aprendida de maneira intuitiva. (Muito do nosso conhecimento começa por ser intuitivo).
Além disto, o mesmo autor pensa que já foi dada uma prova matemática (a priori) para este problema. O teorema de Godel implica que, "qualquer modificação num sistema no sentido de ampliar os seus domínios necessariamente implicará uma modificação nos axiomas não dedutíveis do sistema anterior", por outras palavras, não há função logarítmica, ou qualquer outra que se possa modificar a si mesma, logo não há programa que se possa alterar a si mesmo, o que teria de acontecer com a Inteligência artificial auto-reguladora (autónoma).
Isto não significa que nós seres humanos, no futuro, não possamos tornar-nos máquinas; significa apenas que hoje, e a partir do que conhecemos sobre o que é uma máquina, não temos boas razões para pensar que somos uma delas.
Cont. II
Thomas Nagel mostra-nos que a nossa singularidade, a irredutibilidade da experiência subjectiva ou experiência da primeira pessoa conhecida pelos filósofos como Qualia, é a razão principal pela qual a mente não se resume, nunca poderá resumir-se a um programa computacional. "Nunca poderemos saber como é ser morcego",
mesmo que as neurociências pudessem descrever detalhadamente o funcionamento do sistema nervoso, e tudo leva a crer que assim será, nunca serão capazes de descrever como o indivíduo experiencia; os qualia são intransponíveis, como pensa também McGinn.
Assim, resta-nos a proposta de Searle: a consciência/mente ou é um fenómeno provocado pelo cérebro, mas de ordem superior, ou a consciência/mente é um fenómeno totalmente distinto do cérebro apesar de nele ter origem.
O fisicalismo ou o materialismo tradicional parecem ficar assim cada vez mais longe das suas pretensões.
Isto não significa que não venhamos um dia a concluir que a mente é de natureza material, mas essa noção de material ainda está por definir e não será com certeza a nossa noção tradicional.
Correcção: onde se lê "a saber;" deve ler-se:"a saber:"
Olá Valter!
"Para se discutir o problema da mente-corpo há que suspender o juízo relativamente à noção de alma."
Não posso estar mais de acordo :-)
Mas não percebo alguma má vontade com certos temas que alguns filósofos manifestam; como discutir Filosofia da Religião sem falar em Deus ou de alma? Ou será que esta é uma área menor da Filosofia?
Quanto às questões que colocas
«..."sou" exactamente o quê antes de ter corpo e serei o quê depois de o ter?».
Penso que a questão não passa por aí (passaria, na perspectiva tradicional, mas a existência prévia da alma e a reeencarnação só é colocada hoje, que eu saiba, pelas filosofias orientais, e não é necessária a esta discussão como tu mesmo afirmaste)
Penso como tu, que a mente nasce a partir do corpo e depende dele.
A analogia com a orquestra é particularmente feliz, gosto da ideia do fluxo mental como fluxo musical, embora contrarie a perspectiva Damasi-(ana):-)) de que a mente é mais um fluxo de imagens.
O optimismo que o mesmo revela relativamente à possibilidade científica de virmos a saber o que é a mente é louvável , mas arriscado, e,mais arriscada ainda a ideia que ele defende no livro "Ao Encontro de Espinoza", de que é o biológico que determina o social... mas isso fica para outra discussão... bem como a sua fixação por nomes sonantes da Filosofia :-))
Cont.
Cont.
«Se há uma falha na orquestra, a melodia não é a mesma», é um facto
mas continuamos com muitas perplexidades. Nem todas as falhas no cérebro sugerem falhas na mente. Esta autoregula-se.
Se retirarmos progressivamente músicos à orquestra, a partir de que momento deixamos de ter orquestra? E se fossemos substituindo os músicos, continuaríamos com a mesma música original? Estas questões são importantes a propósito da mente porque é sabido que o nosso corpo hoje, não é o mesmo de quando nascemos já foi tudo substituído pelo menos do ponto de vista físico-químico-biológico.
«Se enveredarmos pelo dualismo, corremos sérios riscos de nunca resolver o problema da mente-corpo (apesar do McGinn considerar que este problema é insolúvel), sem invocar argumentos teístas.»
É capaz de MacGinn ter razão, nota que eu não estou a dizer que concordo, simplesmente parece ser neste momento a solução mais simples, ainda que possa não ser verdadeira.
Cont.
Cont.
A solução que parece recolher mais consenso tal como referiste é a teoria do aspecto dual. Não deixa de ser curiosa a utilização da palavra "dual", por quem quer à viva força evitar o dualismo :-))
Eu penso que parte da solução passa por definirmos muito bem o que entendemos por dual, é que a própria constituição da matéria parece ser dual: corpúsculo e energia, são dois aspectos da luz, mas serão da mesma realidade? E qual a realidade do espaço e do tempo, das leis e forças da Natureza? No início, segundo a ciência, o Big Bang foi uma explosão de energia...
Saudações filosóficas para todos os que nos lêem.
Graça
Enviar um comentário