12.8.10

Universalidade (dois) - Cuturas e Civilização

Stonehenge, imagem retirada da Wikipédia
"(...) Permitam-me distinguir, vulnerando usos comuns dos termos, entre culturas (necessariamente no plural) e civilização (necessariamente no singular). Cada cultura é o conjunto de conquistas, usos, saberes e formas de vida que determinada colectividade humana compartilha, pelo qual se distingue das outras: vem reforçar o sentimento de pertença de cada um dos membros ao grupo comum, a identificação com os outros sócios assim como a diferenciação face aos estranhos. Qualquer cultura pretende ser mais ou menos completa, uma imagem total da existência humana capaz de subsistir de modo auto-suficiente e que oferece o conjunto das respostas imprescindíveis às incertezas dos seus membros: e pode muito bem ser que cada cultura complete tudo ao que aspira mas nunca poderá ser universal, dado que mantém fora do seu âmbito a massa de seres humanos que não a compartilham. (...)
[N]enhuma cultura se relativisa totalmente a si mesma, todas se preferem diante das outras, todas precisam de deixar de fora uma dose suficiente de «humanidade duvidosa ou semi-bestial» que confirme o seu recinto como o perímetro do «povo eleito», os homens autênticos. A cultura ocidental, certamente enquanto mera «cultura», não foi uma excepção, nem em tempos remotos nem na modernidade. (...)
Mas também em todas as culturas nunca falta o embrião de algo que as transcende e rompe as suas costuras, começando com a própria linguagem, essa capacidade de comunicação abstracta enormemente diversa e, no entanto, basicamente comum a todos os humanos, idiossincrásica embora sempre traduzível para palavras alheias: a língua une os nossos, mas a linguagem aparenta-nos com os seres racionais. (...) A esse transcender a sua própria clausura auto-suficiente, que em menor ou maior grau se encontra em todas as culturas, podemos chamar a perspectiva civilizada. (...)
Em que consiste a perspectiva civilizada? Em sublinhar que os homens se parecem entre si mais do que as suas culturas deixam supor, inclusivamente contra o que as suas culturas fazem supor. Este parentesco essencial não se baseia unicamente na universalidade do facto linguístico nem em óbvios motivos biológicos, ainda que estes não sejam nada desdenháveis. Também na similitude de reacções interpessoais, como a compaixão (à qual Rousseau atribuía tanta importância), a vaidade, a curiosidade, a inveja... e o rancor. (...) É evidente que a antropologia pode sem muito esforço ampliar a lista de universais humanos: o trabalho, a capacidade de aprender, a aceitação de pautas sociais, a compaixão perante o sofrimento, o sentido de humor e do ridículo, a preocupação face à certeza da morte, o gosto estético, o gosto para ouvir e inventar ficções, etc.
Certamente, as modalidades em que se manifestam estas capacidades universalmente compartilhadas são enormemente diversas, podemos até dizer zelosamente diversas: o desejo de se saber pertencente a um grupo de identificação entre outros, assim como o desejo correlativo de se auto-afirmar como individualidade discernível dentro do grupo, são também universais! Mas isso não diminui a evidência de que o parentesco do corpo e alma é prévio e de uma relevância ontológica mais substancial do que a diversidade de formas que o expressam. Não é mais importante a capacidade universalmente humana de se rir de uma anedota do que o tipo de anedota que faz rir dentro de cada uma das culturas ou até cada uma das pessoas? (...)
O reconhecimento do humano trascultural nos outros (...), outro, conceptual, porque a humanidade não é um grupo de identificação como os outros mas a noção filosófica do menor denominador comum que aparenta essencialmente todos os grupos entre si. Este parentesco não se refere a uma generalização zoológica (neste caso falamos de espécie humana, não de humanidade), mas a uma forma comum de experimentar a vida com a vida, que está subjacente nas culturas e as torna mutuamente inteligíveis. Quando nos referimos à «humanidade» estamos a aludir a um propósito simbólico, a uma peculiar indeterminação criadora - diferente de qualquer condicionamento instintivo - e, sem dúvida, a uma espécie de comunidade racional, passada, presente e sobretudo futura. (...)
Em meados do nosso século, num dos seus manifestos pacifistas contra as armas atómicas, Bertrand Russell cunhou este lema com o qual invocava a cooperação de cidadãos de todos os países: «Recorda a tua humanidade e esquece o resto.» Continua a parecer-me uma proposta tão válida hoje como no dia em que foi escrita."
Fernando Savater, O Meu Dicionário Filosófico, Tradução de Carlos Aboim de Brito, Publicações D. Quixote, Lisboa 2000, pp. 372-377, (Texto adaptado)

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