13.8.10

Universalidade (três) - Humanidade

Pieter Bruegel, A Torre de Babel (1563)
"(...) Diremos em grandes traços, que a questão da humanidade foi colocada de duas maneiras diferentes: por um lado, a visão iluminada, que faz ênfase no aspecto universal do conceito (isto é, que situa a universalidade como núcleo teórico do propriamente humano) e, por outro a concepção romântica, com o seu finca-pé na pertença universal do efectivamente humano a particularidades irredutíveis (isto é, que face à concepção iluminada de que o particular se sustenta no universal defende que é o universal que se sustenta em e do particular). Vejamos um pouco mais de perto as duas atitudes.
Para o iluminismo, a humanidade como atributo universal ganha sentido a partir da ruptura com essa «falsa natureza» que são os costumes e tradições. Enquanto cada colectivo humano considerar os seus costumes peculiares como «naturais», isto é, como os que melhor expressam o autenticamente humano, será impossível alcançar uma humanidade universal [.]
(...) A humanidade universal do Iluminismo caracteriza-se (...) por uma capacidade interna e activa de auto-invenção: a essência de cada um e de todos os homens, em qualquer época e latitude, é a disposição a pensar por si mesmos, a julgar por si mesmos, a actuar por si mesmos, a expressar-se e a desenhar possibilidades futuras abertas, sendo consequência directa desta autonomia essencial os básicos direitos humanos que a defendem contra limitações ou coações culturais. É particularmente próprio do iluminismo considerar a ordem política em que vivem os grupos humanos como o resultado de um projecto sempre revogável devido à vontade dos homens, à sua razão e ao seu desejo de alcançar o máximo bem-estar neste mundo. (...)
Face a este delineamento, a visão romântica delineia uma emenda de alcance radical. O homem genérico não é mais que uma espécie animal entre outras: os seus impulsos hedonistas e egocêntricos também não o tornam diferente dos seus parentes zoológicos. Para ultrapassar esta condição natural (...) é preciso apoiar-se numa sensibilidade e esta sensibilidade é a inclinação que floresce a partir de uma determinada cultura. (...) Para escapar ao puro naturalismo, os homens necessitam de naturalizar o conjunto concreto de costumes e valores não naturais em que vivem [.] (...)
O projecto de humanismo universalista e a sua crítica, que declara o universalismo como desumanizador, acotovelam-se não já desde o século XIX mas a partir do próprio século XVIII. (...) Podemos, pois, falar de uma modernidade iluminada e uma modernidade romântica, não de modernidade e reacção antimoderna. Nem é justo dizer que a atitude romântica representa pura e simplesmente o retrocesso para formas irracionais, corporativistas ou mágico-religiosas de interpretação e organização da humanidade: também existem nela denúncias de insuficiências ou exageros da mentalidade iluminada (...). Numa medida muito importante, a crítica romântica ajudou a tornar mais subtil, a estilizar e a aprofundar a noção iluminada de humanidade universal, e não simplesmente a desmenti-la. O seu grito de protesto contra a instrumentalização sem limites do real e a submissão de qualquer criação ao mero propósito de funcionalidade não perdeu vigência: pelo contrário, cada vez é mais moderna. Sem uma fundamental dose de reticência romântica, não creio que alguém possa hoje considerar-se verdadeiramente iluminado. Suponho que a combinação de princípios iluminados ironicamente polidos por reservas românticas com as truculentas lições históricas do nosso século (...) define (...) «a modernidade sem ilusões»
Ora bem, com as matizes e salvaguardas que sejam pertinentes, a ideia iluminada de humanidade como critério universal que resgata cada indivíduo humano não da sua cultura mas do reducionismo que o identifica com as constrições peculiares desta e que o caracteriza por uma autonomia que inventa a liberdade a partir da memória mas, por vezes também contra ela... essa noção iluminada parece-me a mais digna de ser afirmada, confirmada e defendida. E isto (...), porque não é algo que apareça insolitamente no século XVIII na Europa (...) -, mas porque se trata de uma ruptura muito mais antiga, o salto civilizatório dado pelos gregos a partir da sua inscrição cultural particular e cujos esboços não faltam como promessa na maioria das culturas que alcançaram um certo desenvolvimento [.] (...)
A revolução grega partiu do diálogo, da igualdade recíproca que propicia o uso da linguagem e da exigência de pensar as atitudes e propostas de modo compreensível [e] publicamente aceitável. (...)
A civilização é o impulso que em cada cultura não procura enfrentar-se com as outras mas que relativiza a pertença à própria, subordinando-a a uma comunidade universal de direitos e interesses para todos os seres humanos. De facto, nem todos os modelos culturais estão igualmente próximos deste ideal civilizatório. (...) É, pois, imaginável que nas próximas décadas se efectuarão confrontações por este motivo. (...) Mas esses conflitos, que sem dúvida vão ser discursivos, não porão as culturas em confronto entre si, mas sim os adeptos que dão primazia às culturas sobre a civilização com aqueles que colocam a civilização acima das culturas. (...)
O empenho humanizador é interminável e os seus melhores êxitos podem provocar também as piores reacções, novos desafios que a reflexão crítica deverá sucessivamente autocorrigir.
Fernando Savater, O Meu Dicionário Filosófico, Tradução de Carlos Aboim de Brito, Publicações D. Quixote, Lisboa 2000, pp. 378-392, (Texto adaptado)

Sem comentários: