9.1.09

Poderá o corpo ser responsabilizado por um estado mental?




Uma colega vossa coloca aqui uma questão bastante pertinente.



Pergunta: Não será possível alguém advogar que, uma vez que a mente é um aspecto pessoal e impossível de analisar cientificamente, é permissível desenvolver certos actos prejudiciais para a maioria apenas porque o agente alega que ocorreram na sua mente processos mentais muito agradáveis e impossíveis de ocorrer na mente de outrem? Ou então alegar que o corpo não pode ser responsabilizado por algo que a mente domina e com o qual não estabalece uma relação assim tão próxima: uma coisa é o corpo, outra é a mente. Desta forma, não havendo castigos para a mente e estando esta separada do corpo, não faria sequer sentido castigar o corpo: eles iriam manter a sua "discórdia".


Resposta: O problema da mente-corpo é estudado pela filosofia da mente e pelas ciências cognitivas e pode ser formulado do seguinte modo: "Qual é a relação entre a mente e o corpo?". Há quem não veja relação nenhuma entre mente e corpo, que a mente não é mais do que o resultado de sinapses, de correntes eléctricas e bioquímicas produzidas pelo cérebro (que é um órgão do corpo). Estes são designados por fisicalistas, defendendo uma posição demasiado materialista, segundo a qual, nós, seres humanos, não somos mais do que um efeito da evolução e, se esta, se deu no sentido da complexificação dos seres vivos, produzindo alguns com capacidade para terem consciência de si mesmos, então, tudo se resume às leis deterministas e nós, seres humanos, temos de perder a mania de nos julgarmos soberanos na Natureza.

Contudo, esta visão do ser humano e da sua mente está longe de ser aceite pelos filósofos. A posição que vigorava até ao surto das ciências do cérebro (ou neurociências), era a de que a mente é independente do corpo. Platão, S. Agostinho, Descartes escreveram páginas sobre isso, ao passo que os gregos epicuristas já alegavam, antes de cientistas como António Damásio nascerem, que a mente é material.

A questão colocada contém uma refutação por redução ao absurdo à tese dualista. De facto, se a mente for independente do corpo, no sentido em que têm uma natureza e um propósito diferentes, será possível alegar que não posso responsabilizar o meu corpo pelas emoções, crenças e desejos que a minha mente produz? Se respondessemos afirmativamente a esta questão, teríamos de conceber a possibilidade de perante um caso de carjacking, o criminoso alegar em sua defesa: " Prendam a minha mente que foi ela que teve a intenção de roubar, que o meu corpo não tem responsabilidade nenhuma nisso, ou se tem, diminuam-lhe a pena!" É, de facto, um absurdo.

Uma resposta mais consensual ao problema da mente-corpo é o da teoria do aspecto dual. Apesar de os pensamentos, sentimentos, desejos e crenças serem despoletados por mecanismos complexos ocorridos no cérebro, a mente não se restringe ao cérebro. Um exemplo: quando cheiras uma flor, o seu cheiro é uma propriedade da flor ou uma propriedade que atribuis à flor através da informação recebida pelos teus órgãos sensoriais? Para os defensores da teoria do aspecto dual, quando cheiras uma flor ocorre em ti dois processos: um físico através do teu cérebro que vai processar a informação colhida pelos órgãos sensoriais, o que é o mesmo que dizer que implica tansformações eléctricas e químicas; outro mental que é a tua experiência do cheiro da flor. Um neurologista a meio de uma intervenção cirúrgica ao cérebro é incapaz de saber o que o indivíduo que está a operar sentiu, efectivamente, quando cheirou uma flor. Esta teoria é, de facto, interessante, porque ao excluir o dualismo, exclui igualmente uma posição demasiado materialista e "fisicista" das experiências pessoais e vivências mentais privadas.

À questão de se será permissível desenvolver certos actos prejudiciais para a maioria apenas porque o agente alega que ocorreram na sua mente processos mentais muito agradáveis e impossíveis de ocorrer na mente de outrem, o mais sensato é defender que não, apesar de esta questão não se prender com o problema da mente-corpo. A experiência subjectiva de que possuímos certos estados mentais é apenas uma prova de que a mente não se restringe ao cérebro e não uma justificação para ilibarmos um serial killer. Extrapolar o problema para questões morais é iniciar uma nova cadeia de perplexidades. De facto, um agente faz acontecer algo em estreita conexão com os seus estados mentais. Se teve a intenção de causar dano a outrem, então deve ser moralmente responsabilizado por isso, ou seja, deve responder pelo acontecimento que provocou intencionalmente.

Apesar de parecer absurda a independência entre mente e corpo, não conseguimos desembaraçar-nos dela num ápice. Quantas vezes não nos apeteceu, quando desejamos a pessoa errada, dizer-lhe: "Gosto do teu corpo, mas não gosto da tua mente!" ou vice-versa?

1 comentário:

Ana Luísa Pereira disse...

Antes de mais, agradeço a resposta (tanto esta como a entrevista) :)

Devo dizer, desde já, que se a tese fisicalista advoga que o ser humano, por ser produto de uma evolução, não se deve considerar soberano da natureza, a considero bastante sensata. Realmente, podemos considerar-nos os grandes premiados no que respeita a evolução o que não nos concede o direito de nos acharmos superiores.

Mas, como diz, a questão do "gosto do teu corpo mas não gosto da tua mente" é sem dúvida uma objecção ao fisicalismo, algo dificilmente refutável. No entanto, tal como diz António Damásio, a mente pode ser feita de matéria, pois esta não tem de ser algo físico, assim como a energia e os fluxos não o são; se assim for, a mente será o corpo e o corpo será a mente: matéria.

Não me vou alongar sobre este assunto, pois iria estar a repetir o que já disse como resposta a um outro comentário doutro texto..