19.1.10

Se te queres matar, porque não te queres matar?


O suicídio pode ser encarado como um problema filosófico se for formulado das seguintes maneiras:

• Será que a vida humana é digna de ser vivida? (problema de natureza ontológica e metafísica)

• Será eticamente aceitável praticar o suicídio? (problema de natureza ética)

O suicídio enquanto problema ético deve ser reequacionado, com o propósito de se encontrar uma justificação para a reprovação ou aprovação do comportamento de um indivíduo que atenta contra a sua própria vida.
Da tradição filosófica chegou-nos vários argumentos que se tornaram clássicos. Sublinho apenas dois pela influência que tiveram no que respeita a este problema na sua dimensão ética.


Argumento 1 Argumento da não propriedade. Este argumento foi apresentado por Platão (Fédon, 62b), e reelaborado, posteriormente, pelos filósofos de inspiração cristã. Segundo este argumento, que designei de argumento da não propriedade, o suicídio é inaceitável, porque não temos propriedade sobre a nossa própria vida. Assumindo-se que a vida humana é pertença dos deuses, não podemos assenhorearmo-nos de algo que não dos pertence por natureza.
Moore distingue propriedades não naturais (de carácter ético) das propriedades naturais (susceptíveis de serem descritas empiricamente). Com esta distinção, e aplicando-a ao suicídio, a vida humana é uma propriedade não natural, pois não somos senhores da vida, como somos de uma mão ou de um braço. Assim, segundo este argumento, não temos qualquer direito sobre a nossa vida, pelo que não podemos atentar contra ela.


Argumento 2Argumento da humanidade. Este argumento aparece descrito na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Immanuel Kant, deduzido da segunda formulação do Imperativo Categórico:
«Se, para escapar a uma situação penosa, se destrói a si mesmo, serve-se de uma pessoa como de um simples meio para conservar até ao fim da vida uma situação suportável. Mas o homem não é uma coisa; não é portanto objecto que possa ser utilizado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado em todas as suas acções como fim em si mesmo. Portanto, não posso dispor do homem na minha pessoa para o mutilar, degradar ou matar.»
Segundo o argumento da humanidade, é eticamente inaceitável a prática do suicídio, na medida em que este é um atentado contra a humanidade. A vida humana deve ser encarada como valor intrínseco (como tendo valor em si mesma) e não instrumental. Para Kant, um acto encontra-se justificado moralmente se for um fim em si mesmo, independemente dos propósitos que se pretendem alcançar com ele. Então, atentar contra a vida com o propósito de encontrar a posteriori alguma tranquilidade, é inaceitável, do ponto de vista moral.


Concordo com o argumento da humanidade em detrimento do argumento da não propriedade. Tentar justificar a inaceitabilidade do suicídio consiste partir dos seguintes pressupostos:


1. Todo o indivíduo que oriente a sua acção com o objectivo de subtrair uma vida humana, age erradamente.
2. O indivíduo que se suicida está a subtrair uma vida humana.
3. Logo, o indivíduo que se suicida está a agir erradamente.


Poder-se-ia defender a inaceitabilidade do suicídio a partir do princípio de que a vida é sagrada, porém, emitir este tipo de juízo de valor não está longe de enfrentar objecções, sobretudo as que se prendem com a dificuldade em definir o que é sagrado e o que determinada substância deve conter para ser considerada sagrada.
Sou igualmente incapaz de considerar que um indivíduo que se suicida manifesta um exemplo de força de carácter e de coragem, como alguns defensores da sua aceitabilidade poderão alegar. A coragem é uma virtude moral, assim, um ser virtuoso, do ponto de vista moral, com carácter, dificilmente aceitará o suicídio nos juízos morais que formula, na medida em que, aliando a sua força moral ao ensejo pela racionalidade, acrescenta que o suicídio não é objecto de ponderação nem de deliberação, e que quem comete tal acto fá-lo movido por interesses demasiado subjectivos, irracionais e infundados. Tome-se o exemplo do filósofo Gilles Deleuze, ter-se-á suicidado por um conceito, uma ideia filosófica, ou pela incapacidade de suportar o sofrimento físico que a doença acarretava? Camus afirma que: "Nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico. (...) Em contrapartida, vejo que muitas pessoas morrem por considerarem que a vida não merece ser vivida."


O problema agudiza-se quando se desdobra noutros, tais como a eutanásia ou o suicídio assistido. Será que ao condenar o suicídio, serei forçado a condenar a eutanásia?
Uma pessoa consciente de si, que se encontra condicionado por uma vida vegetativa, sentindo-se frustrado com a sua situação, apenas se depara com dois cursos alternativos de acção: ou viver o dia de amanhã como o de ontem, ou não esperar pelo dia de amanhã. Por seu turno, o indivíduo que decide suicidar-se, encontra-se perante vários cursos alternativos de acção, de maneira que a sua decisão reflecte uma entre tantas possibilidades de ter agido. Assim, considero menos aceitável o suicídio do que a eutanásia.
É mais fácil reflectir e encontrar, por muito difícil que seja em algumas circunstâncias, uma razão para viver, do que fazê-lo num cenário em que se está condicionado fisicamente, sem esperança de o alterar.

Considerar inaceitável o suicídio pode fazer-nos colidir com uma consequência bem provável. Imagine-se a seguinte situação:

O indivíduo X, um espião israelita no Líbano, foi descoberto pelos seus inimigos. Após ter sido capturado e feito prisioneiro, foi pressionado para revelar segredos sobre a polícia secreta israelita. Munido de apetrechos para a sobrevivência de um espião, durante a noite, tomou a substância que guardava religiosamente no bolso, que o fez sacrificar a vida pela manutenção dos segredos de Estado.


Terá sido o suicídio deste indivíduo moralmente aceitável? Esta pode ser uma consequência da aceitabilidade do suicídio. Ora, parece-me que o indivíduo agiu em conformidade com o princípio de evitar prejuízos a terceiros, sacrificando a sua vida pela sua sociedade. Avaliando os benefícios que este suicídio acarretou, para os israelitas são indiscutíveis, mas não para os libaneses. E para a humanidade, terá sido este suicídio aceitável? Não querendo entrar em pormenores de política internacional, a aceitabilidade deste acto apenas se poderia defender se trouxesse benefícios para a humanidade, sacrificando a sua vida pelos outros, pelo bem universal. Pois, se não pensarmos assim, será que podemos condenar os actos dos terroristas? Provavelmente não.


Imagine-se, agora, outra situação, esta bem real e avaliada pelo olhar de todos, em 11/09/2001. Poderemos aceitar o suicídio dos indivíduos que se encontravam nas Torres Gémeas no momento da colisão dos aviões? Para a avaliação desta situação, os argumentos da não propriedade e da humanidade não se adequam. Numa situação-limite como esta, não podemos condenar o acto, pois não foi ponderado, antes movido por impulsos que o tornam pouco racional, e assim, os seus factores tornam-se indiferentes a uma avaliação moral justa.

John Millais, Ophelia (1890)

Álvaro de Campos, num estilo bem perturbador, adianta:

«Se te queres matar, porque não te queres matar?/Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida, / Se ousasse matar-me, também me mataria.../Ah, se ousares, ousa!»

Estes versos, ainda que preludiem a defesa do suicídio no decurso do poema, denotam a ousadia que é necessário ter para atentar contra a nossa própria vida. E o que é a ousadia, senão o temor proveniente do risco da transgressão, do trespassar o pesado véu das convenções e normas morais, sabendo-se que por detrás do pesado véu há um princípio claro e evidente, embora difícil de destrinçar, que nos impede de praticarmos o suicídio?

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