17.3.10

A Questão dos Critérios Valorativos



Mariana: Sabes que nos Estados Unidos existem comunidades de Amishes, grupos de cristãos conservadores que vivem afastados da restante sociedade, ainda usam carros puxados por cavalos, vestem-se como os agricultores do séc. XVIII, não têm televisões, nem telefones, nem computadores; produzem tudo o que consomem, são agricultores, pastores, artesãos... Olha, como se vivessem há trezentos anos atrás, por exemplo. Não achas encantador?

Rui: Encantador? Ó Mariana, essa gente parou no tempo, tem um tipo de vida inaceitável nos dias de hoje, inconciliável com o mundo desenvolvido, civilizado.

Mariana: Não sei porque dizes isso. Levam uma vida simples, não prejudicam ninguém, por isso é lá com eles. Nós não temos nada que censurar. Acho que estás a ser intolerante.

Rui: Se calhar devemos ser intolerantes mesmo, nestes casos. Tu sabes que nessas comunidades os jovens não podem estudar para além daquilo que em Portugal corresponde ao ensino básico? Isto se for rapaz, porque as raparigas só podem andar na escola até aos doze anos o que as impede de aprender pouco mais do que a ler e a contar. Sabes que os casamentos são combinados entre as famílias e as raparigas são praticamente obrigadas a casar aos treze ou catorze anos e, obviamente, sempre com indivíduos da comunidade?
Não permitindo aos indivíduos nascidos nestas comunidades contactar com o exterior ou conhecer qualquer outra realidade social, condenam-nos a uma vida de total submissão social e religiosa e os que desobedecem são excomungados e expulsos da comunidade e então são lançados num mundo cujas regras e costumes desconhecem em absoluto. Não lhes é permitido nem conhecer, nem preparar-se para viver e trabalhar no mundo em que realmente vivem, como tu e eu. Isso é errado, imoral mesmo.

Mariana: Mais uma vez, só a eles lhes diz respeito. Esse modo de vida que tu consideras subdesenvolvido ou incivilizado e imoral está organizado segundo as suas regras, os seus valores morais e não segundo os nossos, que são para eles verdadeiros embora não o sejam para nós. O mesmo se passa com os nossos valores, só são verdades para nós. Os valores são relativos à cultura em que são produzidos, só nesse contexto podemos avaliar da sua verdade ou falsidade. Temos de os respeitar assim como eles têm de respeitar os nossos. Não vês que, neste domínio, é tudo muito relativo?

Rui: Bom, então diz-me uma coisa: Pelo que dissemos antes, reconheces que estes indivíduos não têm certos direitos que nós consideramos garantidos e que não aceitaríamos que nos fossem subtraídos na nossa sociedade?

Mariana: Exactamente, na nossa sociedade são situações moralmente inaceitáveis mas entre eles não.

Rui: Então diz-me uma coisa: Consideras que Declaração Universal dos Direitos Humanos consigna um conjunto de direitos de todos os homens e que devem ser universalmente respeitados ou…… relativamente?

Mariana: Hummm… Universalmente, claro!

Rui: E como concilias essa convicção com o que defendeste antes?

Mariana: A tua questão é, sem dúvida, pertinente. Tenho de pensar Rui. Gostei muito da nossa conversa.

Rui: Também eu, Mariana. Só o debate sobre estas questões nos permitirá esclarecê-las. Depois falamos outra vez.

Mariana: Falamos sim. E prometo-te que vou pensar muito bem nos teus argumentos.

Quem tem razão?

2 comentários:

Graça Silva disse...

Olá, boa ideia Luísa.
Os Amishe são um bom exemplo daquilo que talvez pudessemos chamar maus tratos por privação. Estas comunidades, e outras semelhantes, exercem uma forma de "violência passiva" ignorando os direitos fundamentais mais básicos dos seus jovens. Não me parece que os pais tenham o direito de privar assim os seus filhos de uma escolha livre e esclarecida. Ainda que possam estar cheios de "boas intenções", estão a comprometer o seu futuro.
É um tipo de "violência" injustificável e incompatível com um mundo civilizado.

Este, e outros casos semelhantes, parecem ser situações em que os filhos são vistos pelos pais apenas como meios para uma espécie de continuidade egocêntrica de si mesmos, como se não fossem seres com dignidade própria; sendo-lhes negada uma existência autêntica.
bj.

Luísa Barreto disse...

Olá Graça ;)
Exactamente! Aliás, todos os indivíduos da comunidade, e não só os jovens, estão submetidos a essa forma de privação de direitos, como muito bem referes.
Escolhi este exemplo (como já tínhamos falado entre nós) porque me permitia alertar para estas formas mais subtis de violência que, não provocando o mesmo choque e repugnância que comportamentos como a lapidação ou o infanticídio, não deixa de nos questionar sobre a possibilidade/necessidade urgente de procurar critérios morais trans-subjectivos e transculturais que nos permitam “resgatar” as questões morais do domínio da simples opinião e sentimentos pessoais ou da autoridade da tradição cultural.
Aproveito para congratular os meus alunos do 10ºC que mostraram excelente capacidade de avaliação desta situação no seu teste.