(…) [Imagine-se que] os meus vizinhos discordam radicalmente de mim quanto ao estatuto moral do aborto. Perante isto, pergunte-se: é o aborto moralmente aceitável ou moralmente condenável relativamente à cultura de Sunderland, Massachusetts? E será que os cidadãos de Sunderland contam sequer como a minha cultura, ou deverei incluir também no que conta como a minha cultura os pontos de vista dos meus familiares e amigos, que se encontram espalhados pelo globo? As complicações parecem tornar-se ainda mais desesperadas quando aplicamos a perspectiva relativista a acções que, sendo praticadas numa cultura, têm consequências que afectam outra, ou que são praticadas por uma pessoa de uma dada cultura que se encontra inserida numa cultura diferente da dela.
A falha essencial não é tanto o relativismo cultural estar formulado de maneira imprecisa; é, em bom rigor, o facto de se tratar de uma perspectiva que resolve questões morais num estilo pouco razoável: o relativista cultural trata a moralidade como um concurso de popularidade local, em vez de a tratar como uma matéria aberta à razão, e sensível a considerações que extravasam a mera opinião. Por isto, é uma perspectiva que mete os pés pelas mãos em matérias de reforma moral e de argumento moral.
Imagine uma pessoa abolicionista que é a única abolicionista numa sociedade que permite a escravatura. De acordo com o relativismo cultural, este abolicionista está simplesmente enganado quando defende que a escravatura é errada, uma vez que o código moral da cultura em que vive a permite claramente.
Quaisquer argumentos que a pessoa abolicionista tenha para justificar a sua posição, por muito convincentes que possam ser, são simplesmente irrelevantes. Quando uma pessoa de um estado livre discute a escravatura com uma pessoa de um estado esclavagista, diz-nos o relativismo moral, não discordam uma da outra; estão cada uma a falar para seu lado. A escravatura é errada relativamente à primeira cultura e permissível relativamente à segunda. Os argumentos não são mais que adereços. Ora isto inverte completamente o nexo das coisas: uma prática não é errada meramente porque acreditamos que seja errada; ao invés, batemo-nos, com o auxílio da razão e de argumentos e também da sensibilidade, da empatia e do conhecimento de considerações empíricas, para acreditar que são erradas as coisas que são, de facto, erradas – e fazemo-lo porque elas são erradas.
Alexander George (org), Que Diria Sócrates, 2008, Lisboa, Gradiva, pp.86-88
Pode encontrar mais perguntas e respostas sobre questões filosóficas, em inglês, no célebre site AskPhilosophers.org
2 comentários:
Professora,
Eu, como sempre, metendo-me insistente nessas questões de relativismo cultural e absolutismo moral. Não que me entenda versado no assunto, antes pelo contrário, apenas sinto-me atraído pela polêmica e por sempre descobrir que, especialmente nessa matéria, cada dia sei menos. Contudo, desta vez intrometo-me apenas para dizer que muito apreciei os dois ensaios e, sem nenhuma maior relutância, concordo com o autor. O relativismo - senti assim algumas vezes -, pode ser uma cômoda posição. Resigno-me diante de um ato desumano... É lá da cultura deles! Dou de ombros e sigo ruminando a vida.
Saudações
Joaquim, ainda bem que os posts foram úteis. Nós é que agradecemos os comentários. :)
Esta é uma questão que suscita ainda muitas confusões. Nós leccionamos estes conteúdos no décimo ano e, na minha experiência pessoal, é o problema que suscita maiores polémicas e mesmo alguma "resistência" por parte de muitos alunos (e mesmo das pessoas com quem converso por vezes). Daí a preocupação em partilhar algumas reflexões sobre o assunto. Virão mais algumas, fique atento ;)
Concordo plenamente que talvez o maior problema do relativismo seja a indiferença, e tudo o que ela permite.
Não deixe de comentar!!! Aprendemos uns com os outros, os comentários são um estímulo. Também preciso de aprender muito sobre o relativismos e muitas outras coisas.:)
Saudações
Graça
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